Discurso proferido por MIRIAM DE ALMEIDA SOUZA aos três dias do mês de dezembro de 2008, por ocasião de sua posse no cargo de Cônsul-Honorária da Grécia e abertura do novo Consulado da Grécia em Salvador, Bahia, Brasil, em solenidade realizada na Associação Comercial da Bahia, na presença de autoridades e de Sua Excelência, o Embaixador da Grécia no Brasil e Senhora.
Excelentíssimo Senhor Vice-Governador, em nome de quem saúdo Sua Excelência, o Governador do Estado da Bahia.
Excelentíssimo Senhor Vice-Prefeito, em nome de quem saúdo Sua Excelência, o Prefeito da Cidade do Salvador.
Excelentíssimo Senhor Cônsul Decano do Corpo Consular, em nome de quem saúdo seus eminentes integrantes.
Excelentíssimo Senhor Presidente da Associação Comercial da Bahia, em nome de quem saúdo a classe empresarial de nosso Estado,
Demais autoridades presentes ou representadas,
Minhas Senhoras e meus Senhores,
Senhora Embaixatriz,
Senhor Embaixador Andonios Nicolaidis:
Hesito ao iniciar estas palavras. Não sei se, em primeiro lugar, devo agradecer pela honra de ter sido escolhida para gerir o Consulado da Grécia em Salvador ou o deleite de pensar que meu amor pela Grécia teve uma inusitada e bela recompensa. Assim, poderei retribuir a imensa dádiva em minha formação de desfrutar do convívio com os mitos, as ciências e as artes da Grécia Antiga. Simultaneamente, demonstrar minha grande admiração com o desenvolvimento da cultura e da civilização gregas desde aquela época até a contemporaneidade
A hesitação envolve a segunda das minhas considerações igualmente. Quero dizer que talvez fosse melhor iniciar esta fala agradecendo a extraordinária confiança que demonstra Vossa Excelência nesta professora, advogada — cuja vocação de servir ilumina a sua vida – confiança, repito, ao designá-la para uma função que a própria estrutura legal do Itamaraty dispõe como coadjuvante nas atividades da Embaixada, nos termos da Convenção de Genebra.
A confiança, por sua vez, será a fé no desempenho, na dialética dos entendimentos objetivos, na atualização dos valores, que sabemos comuns, por meio de um cotidiano de questões e interesses concretos.
A ordem dos fatores, no caso, tem seu significado, e Vossa Excelência o sublinhou ao me delegar essa bela missão que implica num funcionamento pleno do escritório nestes próximos anos, traçando paralelos com as experiências exitosas dos que me antecederam, tanto quanto me permitir meu empenho de servir ao cidadão grego na Bahia. A par disso, promover o intercâmbio cultural e artístico entre Grécia e Brasil, embasado numa saudável relação de troca especificamente comercial, e turística.
Assim é que recebo essa distinção e essa missão, convicta de que o Senhor Embaixador divisou em minha alma o rosto grego e a paixão pela Grécia. Inundou-me sempre a sua natureza, a sua topografia, o seu mar cristalino, o seu povo, as suas realizações – ao som de sua música de cordas e da dança que tanto dizem à alma brasileira e baiana.
O mundo ocidental guarda em seu mais íntimo e para sempre a fisionomia grega. Reconheço em minha terra a marca indelével do nosso berço cultural, artístico e civilizatório. Talvez, portanto, eu venha a fazer jus à tão desvanecedora honraria.
Conto com que meu trabalho confirme haver feito Vossa Excelência uma escolha acertada. Digo com o escritor mexicano Octavio Paz: “A forma que se ajusta ao movimento é pele – não prisão – do pensamento.” Assim desejaria minha gestão.
Meditava o múltiplo madrileno Ortega y Gasset que as variações da sensibilidade vital são decisivas na história, apresentam-se na fisionomia de uma geração. Minha geração despertou para a necessidade de pensar o Brasil durante o Governo Juscelino Kubitschek. Político, sim, mas um construtor de sonhos que quis realizar no Planalto Central a idéia da Acrópole e suas cercanias com edificações em linhas harmoniosas, a serem seguidas com o olhar – como nos templos da Grécia dórica e jônica. A cidade de Brasília assim como a de Atenas foi construída na parte mais alta do relevo da região – como indica a raiz do substantivo “acrópole” (“akros”, extremo, “alto” + polis). A posição tem tanto valor simbólico como estratégico. Respirava-se, então, um sentimento de absoluta confiança nos destinos do país. Esse sentimento permanece vivo, continua a nortear nossa prospecção de futuro, inclusive no terreno basilar da diplomacia.
De minha parte, lhe digo autenticamente que seria impossível encontrar cargo que mais se adaptasse a meu temperamento, a minha maneira de ser, ao que espontaneamente gosto de fazer. Que Vossa Excelência haja tido tal rara sensibilidade ao ver-me por inteiro é coisa que me emociona: será porventura inspiração do Olimpo…
Representar um país é tarefa delicada e não sem riscos de muitas ordens. Quem pensa se tratar da organização de eventos e de atividades de divulgação, das relações de troca de fatos estará em caminho equivocado. Irá ignorar que, para cada fato, existem já, antes, muitas percepções, a envolverem outros tantos interesses, inclusive o mais forte destes, sempre, que é o interesse no status quo, em que as coisas fiquem como estão. Entre as tarefas cruciais do planejador está a consideração às políticas e percepções vigentes e o entendimento certo das razões que a ambas sustentam.
A política exterior ou está voltada para a diplomacia, ou é um exercício de ilusões, alheio ao interesse do país representado. A tarefa da diplomacia, mesmo a de um Cônsul Honorário, é, inclusive, a de desatar nós. A tarefa não é apenas a de se utilizar do herdado cultural e científico que já está sedimentado – e é tudo espantoso, mas a de se inserir novos elementos de informação e análise, novos elementos que instrumentem um marco conceitual criador eficiente, satisfatório e amplo e complexo.
O acerto de uma gestão não se corrobora por sua novidade ou por aplausos ocasionais, mas por sua capacidade de representar mais adequadamente a realidade e, naturalmente, de levar a ações diplomáticas mais sólidas, mais econômicas lato sensu, e mais proveitosas para os países envolvidos. Daí minha muito especial satisfação em assessorar Vossa Excelência, senhor Embaixador, mesmo de modo modesto e nesse sentido nortearei meus passos nesta gestão que ora se inicia.
No decorrer dos meus embates profissionais na cátedra e na Justiça, neste país ou fora dele, aprendi que uma ação substitui mil doutrinas. E não o aprendi ouvindo extensos argumentos, mas observando instâncias em que o ser humano se revela com determinação, com serena audácia. Aprendi a ser mais humana com meus pares, com outros seres humanos. Pois, disse-o magnificamente o poeta e pensador inglês John Donne, “nenhum homem é uma ilha”.
E é assim que se manifesta o pernambucano, de alma espanhola, João Cabral de Melo Neto, no poema “Tecendo a Manhã”, de A Palo [1] Seco:
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
Buscarei atuar tentando, sobretudo, refletir — melhor, refletir para adiante, no sentido próprio e íntimo dessa reflexão: mais que o reflexo, o mistério do espelho que vê a imagem como enigma, como introspecção criadora, voltada para as essências e o futuro.
Quanto às relações comerciais, enche-me de um sadio orgulho pensar ocupar, a Grécia, a liderança mundial do transporte marítimo. Em 2007, por exemplo, a frota mercante da Grécia foi responsável pelo transporte de 16,9% da tonelagem global. A atividade representou, para os gregos, em 2006, 14,3 bilhões de euros, segundo informe da União dos Armadores Gregos (EEE) e o País continua, auferindo, desta, a sua maior fonte de recursos, à frente mesmo do turismo.
Este dado é importante no momento em que o desenvolvimento da Indústria Naval Brasileira ganha espaço, assim como os novos desafios que enfrenta em virtude do aumento do setor petroquímico. As oportunidades de negócios surgem no País e passam a exigir a ampliação e modernização de seus portos.
Reflito sobre a mobilidade do mundo contemporâneo, dos últimos dez anos, sem saudades das estruturas rígidas da paz armada, imobilizadora do dinamismo internacional, pretexto para o imobilismo nos anseios dos povos. Entretanto, vivemos um momento de crise global com tantas e tão graves conseqüências em países do Oriente e do Ocidente, que estão a exigir de nós um olhar de meditação sobre os ensinamentos da Grécia Clássica.
Vale agora e desejavelmente, como sempre valerá, o método de Sócrates, o elenchos, para então divisar os nossos próprios erros. Com ele, voltar a acreditar na imortalidade da alma a ver se cometemos menos desmandos. Porventura teremos recebido em certo momento de nossa vida, uma missão especial do deus Apolo, uma Apologia, a defesa do logos apolíneo, o “conhece-te a ti mesmo”.
Vivemos um momento sofista no que tem de destrutivo do senso comum. Não há como permitir a falsidade de premissas enganosas como a que vivenciamos em nosso depauperado mundo. As catástrofes se sucedem irreparáveis – nas áreas política, social, econômica, do consumidor, do indivíduo, enfim, que sente as nefastas conseqüências de um mundo gerido sem respeito à dignidade humana e ao meio ambiente.
Bem a propósito, a recente afirmação do teólogo catarinense Leonardo Boff:
Num artigo anterior afirmávamos que a atual crise mais que econômico-financeira é uma crise de humanidade. Atingiram-se os fundamentos que sustentam a sociabilidade humana – a confiança, a verdade e a cooperação – destruídos pela voracidade do capital. Sem eles é impossível a política e a economia. Irrompe a barbárie.[2]
Finalmente, agradeço, sensibilizada, a presença de todos que aqui vieram homenagear este momento especial de investidura e abertura das atividades do Consulado da Grécia em Salvador.
E concluo, registrando que muitos estranharão a escolha da minha pessoa para exercer o cargo de Cônsul Honorário. Não sou grega nem descendente de gregos — o que não é exigido para o cargo, ressalte-se. Entretanto, poderá parecer imprevisto para muitos.
Machado de Assis, pela boca do Conselheiro Aires, afirma em Esaú e Jacó que “[…] o imprevisto é uma espécie de deus avulso, ao qual é preciso dar algumas ações de graças; pode ter voto decisivo na assembléia dos acontecimentos”.
Se a alma pode manifestar-se, Senhor Embaixador, gostaria de ser acolhida pelos membros da colônia grega na Bahia – gregos ou Greco-descendentes – até porque a Grécia passa a ser minha segunda pátria, não apenas no aspecto formal, mas pela íntima adesão dos meus sentimentos.
Obrigada !
Cidade do Salvador, Bahia, 03 de dezembro de 2008.
Miriam de Almeida Souza
Cônsul-Honorária da Grécia em Salvador
[1] A palo seco = cante sem guitarra especialmente em Córdoba, Espanha.
[2] Disponível em: http://ciadeorquestracaocenica.zip.net/